FERNANDO ZACARIAS: 80 ANOS DE UM MENINO QUE SONHAVA SER PORTA-ESTANDARTE

 

Galo da Madrugada - Recife, PE

 

23 de outubro de 2023

FERNANDO ZACARIAS: 80 ANOS DE UM MENINO QUE SONHAVA SER PORTA-ESTANDARTE

Em 2023, uma das figuras mais queridas e conhecidas da história do carnaval do Recife completa 80 anos de vida. Mais de 50 destes dedicados à arte que já amava ainda criança – a de carregar um estandarte. Em 30 de setembro de 1943, nascia, no Bairro de Fundão (Zona Norte do Recife), Fernando Zacarias. Folião nato, que, ainda moleque, já via e fazia a folia de rua do Recife – que começava nas periferias, de onde as tradicionais agremiações saíam e, a pé, seguiam em direção às passarelas do Centro do Recife. E o pequeno Zacarias ia junto, “babando” quando via aquelas figuras emblemáticas, envoltas de elegância, trazendo o estandarte à frente do bloco. Com tamanha paixão pelo carnaval, não é de se estranhar que ele tenha chegado aonde chegou: primeiro e único porta-estandarte do maior bloco do mundo! Nessa entrevista, abaixo, o leitor poderá viajar um pouco pela história desse folião e patrimônio vivo, que, por vezes, pode se confundir com a própria história do carnaval de rua do Recife. Salve, seu Zacarias!

Quais as recordações mais antigas que você tem do carnaval?

Na minha época de criança, carnaval era de muito confete, serpentina, a gente brincava de manhã (na rua) e, à noite, ia pro centro da cidade ver as agremiações. Eu fazia, com papel de seda e cabo de vassoura, meu estandarte pra brincar com meus irmãos e colegas. Meu pai me levava pra ver as agremiações na Praça do Diário e eu ficava só vendo os porta-estandartes evoluindo, desfilando. Havia uma passarela por onde os blocos passavam, apenas o porta-estandarte, que era o símbolo da agremiação, que ficava lá em cima. Eu ficava a olhá-los e sempre dizia “um dia, eu ainda serei um deles”. Isso, ainda com uns dez anos de idade.

Quais as agremiações que você via desfilarem naqueles tempos?

Via desfilar, à noite, Vassourinhas, Clube das Pás, Lenhadores, Lavadeiras de Areias, Toureiros de Santo Antônio e várias outras. De dia, tinha Abanadores do Arruda, Cachorro do Homem do Miúdo, Camisa Velha, Transporte em Folia, Destemidos de Campo Grande… vinham todas dos seus bairros a pé, pro Centro do Recife, com a orquestra tocando e a gente dançando. Não íamos de ônibus como hoje, não, era andando da sede até a cidade, fazíamos todo o percurso.

Quando garoto, Zacarias já se encantava com a figura do estandarte e confeccionava o elemento em papel de seda e cabo de vassoura para brincar na rua. Fotos: Acervo Fernando Zacarias e Galo da Madrugada

E quando começou a experiência de verdade com o estandarte, símbolo maior de uma agremiação?

Em 1971, já casado, fui ver o carnaval no Centro e me deparei com a troça Abanadores do Arruda. Me deu aquela vontade de pegar num estandarte pra ver se eu conseguia. Peguei e me senti orgulhoso. Tempos depois, através de um vizinho, que era muito amigo do presidente dessa mesma agremiação, fui levado para fazer um teste para ser porta-estandarte. Passei! Me mandaram vir, já no dia seguinte, tirar a medida da roupa. Eu não estava nem acreditando naquilo. Como se não bastasse, faltando 15 dias pro carnaval, fui levado ainda ao Clube das Pás, que também me chamou para ser seu porta-estandarte naquele mesmo ano. Estreei, no carnaval de 1972, desfilando nos Abanadores, de manhã, e no Clube das Pás, à noite. Ambos foram campeões naquele ano (nas suas respectivas categorias – manhã e noite) e, para minha grande alegria, todos dois com nota dez no quesito porta-estandarte.

E como foi a trajetória do porta-estandarte Fernando Zacarias nos anos seguintes àquela grande estreia?

Todo concurso, eu era campeão ou vice. Cheguei a vencer por quatro anos consecutivos. Foi nessa época que seu Enéas (Freire, fundador do Galo da Madrugada), me viu desfilando com o estandarte das Pás no Pátio de São Pedro.

Mal começara a trajetória nos blocos, o porta-estandarte já arrematava todos as premiações em concursos no Recife.

Foi a partir daí que começava a sua trajetória com o clube que se tornaria o maior bloco do mundo?

Seu Enéas falou com o presidente de Banhistas do Pina, Vavá, de quem era muito amigo, e disse: “queria aquele porta-estandarte pro meu bloco, como faço para falar com ele?”. Foi então que Vavá nos apresentou e, de imediato, seu Enéas marcou para eu ir na sua casa. Chegando lá e já fui questionado: “quanto é seu cachê para desfilar no Galo?”. Fiquei sem saber o que dizer, falei que nunca havia recebido pra desfilar; nenhum clube, naquela época, pagava a ninguém. Apenas davam a roupa. Até o sapato, o meião, a luva e a peruca era a gente quem comprava. Era por amor mesmo.

Topada a proposta, como foi o início daquela brincadeira que, logo logo, tomaria proporções gigantescas?

Lembro que, naquele meu primeiro ano (1979), seu Enéas pediu para que eu chegasse às 4h. Quando cheguei, ele me mandou ir tomar o café da manhã num barzinho que tinha lá na Rua Padre Floriano e, ao voltar pra sede do Galo, comecei trocar de roupa e montar o estandarte. Era novo, havia sido desenhado pelo filho mais velho de seu Enéas, Mauro, e feito por dona Maria do Monte, que trabalhava como bordadeira num convento em Olinda. Só que começou a chover muito, daí seu Enéas disse: “o estandarte não vai sair não. Foi muito caro, não vou colocar ele na chuva”. Saímos então com o de madeira, do ano anterior, 1978 (primeiro ano que o Galo saiu às ruas).

Mesmo sem o estandarte novo, a chuva atrapalhou o desfile?

Mesmo assim, o Galo saiu com muita gente, todo mudo acompanhou. Fizemos o trajeto saindo da sede, na Rua Padre Floriano, pegamos a Praça do Pirulito, Forte das Cinco Pontas, Rua da Concórdia, Rua Nova… As lojas ainda abrindo, o povo, vendo o bloco, fechava de novo as lojas e ficava aquele corre-corre de gente brincando. Por volta das 9h, chegávamos na Praça do Diário, onde ficávamos até por volta do meio-dia. Depois disso, voltávamos pelo Pátio de São Pedro, cortando por aquelas ruas, até chegar de volta à sede.

Ao longo de todos esses anos, houve algum desfile ou momento que você tenha considerado o mais inesquecível?

Quando o Galo fez 30 anos, em 2008. No meio do desfile, ainda na Rua da Concórdia, seu Enéas veio até mim e me entregou um troféu de melhor porta-estandarte, em comemoração às três décadas de desfiles no maior bloco do mundo. No ano anterior, 2007, também fui condecorado, pela Prefeitura do Recife, com uma medalha de porta-estandarte dos 100 Anos do Frevo.

Prêmio pelos 30 anos do Galo, recebido em 2008, por seu Enéas, está entre os momentos mais inesquecíveis de Zacarias.

Nessas cinco décadas, de quantas agremiações, aproximadamente, o senhor já teve a honra de levar o estandarte?

Desde 1972, nunca deixei de desfilar. Só parei nos dois anos de pandemia. Fora isso, já desfilei em Pitombeiras dos Quatro Cantos, Marins dos Caetés, Vassourinhas de Olinda, Cariri, A Porca de Olinda, Estrela de Paudalho, Vassourinhas do Recife, Lenhadores do Recife, Bola de Ouro, Banhistas do Pina. Difícil saber a conta exata.

Qual o segredo da dança tão peculiar de um porta-estandarte?

Nós não somos como um passista de frevo. O passo é diferente. Fazemos uma coreografia, um balé de acordo com o frevo, dando ênfase, principalmente, às paradas. Quanto mais cadenciado o frevo, melhor para a evolução do porta-estandarte. Também primo muito pela minha roupa.

Um de seus quatro netos, o Vinícius Arthur Zacarias, também se tornou porta-estandarte. Houve alguma influência do avô?

Ainda com três anos de idade, ele me acompanhou pela primeira vez num desfile do Galo. Três anos depois, chegou pra mim e pediu: “vô, o senhor podia fazer uma roupa pra mim igual à sua?”. Fiz pra ele. Naquela mesma época, o Galo criou o Pinto da Madrugada (versão mirim do maior bloco do mundo, que sai às ruas na terça-feira de carnaval) e ele ficou como porta-estandarte oficial. Só que, no primeiro ano, o estandarte do Pinto era de madeira e ele não conseguia carregar, tive que levar no lugar dele. Pro ano seguinte, minha filha (mãe de Vinícius) desenhou o estandarte definitivo, que ele leva até hoje.

E, pelo visto, o neto tem trilhado o mesmo caminho de sucesso que o avô, verdade?

Ele já passou por dois concursos de porta-estandarte mirim, no Pátio de São Pedro, tendo sido campeão em todos eles. Lembro que na hora de se apresentar, ele chegou pra mim e disse: “vô, não se preocupa, eu vou honrar teu nome”. Quando entregaram-lhe o troféu de vencedor, ele me chamou pra subir ao pódio.

Aos 80 anos de idade e mais de 40 carregando o símbolo maior do Galo, a emoção ainda é a mesma que nos primeiros desfiles?

A paixão é exatamente a mesma, quando saio. Até falando, fico emocionado. Quando saio com o estandarte, da sede até chegar ao começo do desfile, na concentração, você não tem ideia da quantidade de gente que me para pra tirar fotografia. Tem um cidadão, também já idoso, que me acompanha desde o meu começo no Galo até hoje. Sem contar a emoção imensa que sinto ouvindo o povo gritar pelo meu nome.

Foram muitos sonhos realizados junto ao maior bloco do mundo?

Eu estou no livro dos recordes! Recentemente, recebi a maior comenda do Estado de Pernambuco, a Medalha do Mérito José Mariano. Nunca imaginei que iria na residência de Ariano Suassuna (em 2014, durante preparativos do Galo para homenagem ao saudoso escritor). Ainda desfilei na Marquês de Sapucaí, pela escola de samba Vila Isabel, em 2016. Também estive com Carlinhos Brown, em seu bloco, na capital baiana (2010). Estive nas duas vezes em que o Galo desfilou em São Paulo. Antes de partir, quem sabe, quero publicar um livro com o título “Um Sonho de Criança que se tornou Realidade”.

Encontro com Ariano Suassuna, em janeiro de 2014, também está entre os melhores momentos de Zacarias no Galo.

Que partir, que nada, seu Zacarias! O folião pernambucano quer é ver o senhor, por muitos e muitos carnavais ainda, dando seu show à parte no maior espetáculo da Terra. São 80 anos de um menino que sonhou e viu se concretizar algo bem maior do que desejava. Não só se tornou porta-estandarte como o mais emblemático da história do carnaval pernambucano. Viva! Vida longa, seu Fernando Zacarias!  

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